[COLUNA] Rios, pontes e overdrives não esculturam mais os manguezais - Por Maria Lua Ribeiro
Pernambuco é repleto de referências no cenário artístico e cultural local. Sobretudo no movimento manguebeat que está intimamente relacionado à desiguldade socioeconômica da nossa região e à preservação do ecossistema mais rico na biodiversidade global, o manguezal. E essa diversidade, desde quando surgiu o movimento, continua muito abrangente e difusa, tanto no mangue quanto na cena musical. E sabe-se que tal pluralidade não se limita à música, mas se expande para outras formas de expressão cultural. No cinema, tomemos como exemplo o filme de Claudio de Assis, A Febre do Rato, em que ele ilustra muito bem essa discussão em uma das cenas. E Zizo que foi inspirado nos poetas marginais, interpretado por Irandhir Santos, declama o seguinte: "O homem, que produz a merda, que suja o mangue, que nasce o caranguejo, que é comido pelo homem, que produz a merda..."
A moda também possui suas peculiaridades e características próprias dos mangueboys e manguegirls. Basicamente é a releitura de processos e confecções manuais da tradição popular, como as rendas, o couro e a palha - impossível não lembrar de Chico Science e seu típico chapéu -, que são amplamente usados para remeter ao regional. Nas artes plásticas podemos citar Thina Cunha que já elaborou peças entre quadros, relevos e esculturas de materiais que seriam jogados no lixo, inspiradas no mangue. O que reforça a importância de sua preservação. Derlon Almeida também é referência nesse quesito, e suas obras por vezes dialogam e retratam aspectos do manguebeat.
E a cena musical pernambucana continua trazendo à tona novas gerações com um repertório vasto em suas canções. A Black Mud não me deixa contradizer. Formada pelos recifenses Rafael Cabral (vocal/guitarra), Gabriel Santana (baixo/backing vocal), Lucas Felipe (bateria) e Carlos André (guitarra/backing vocal), vê-se que a banda, apesar de bastante jovem, faz um rock alternativo e regionalista, com influências de Nação Zumbi, Otto, China, Mombojó junto a uma pegada mais indie da The Strokes, que nasceu na mesma época em que o manguebeat havia eclodido no Brasil. Em uma de suas composições, a Black Mud sustenta na letra o reflexo do que presenciamos diariamente às margens do Capibaribe, com a devastação do meio ambiente - desde uma garrafa pet boiando nas águas negras e densas do rio, até arranha-céus monstruosos sendo erguidos a todo custo -. No som, o peso e o porte da bagagem cultural carregada na identidade da banda. Refiro-me à Mangue Saudade, uma das canções contidas no primeiro EP, Vivendo uma Dose. E um novo trabalho já está sendo produzido por eles. Mais um EP que foi batizado por Alicerce do Novo. Em breve eles retornarão aos palcos para contaminar o público com seu som independente e cheio de atitude.
Mangue Saudade - Black Mud
Eu me perdi nessa cidade Virei porto sem um cais Eu vi tanta calamidade E me escondi nos manguezais
Óh minha terra tão querida Cada rio é sua história Cicatrize das feridas Esquecidas na memória
As suas pontes e caminhos Seus becos e caboclinhos O céu bem arquitetado No teu marco tão sozinho
Carregaram seus passados Mas você não vai morrer Porque nesse caminho andado Nós iremos percorrer
Entre becos, fome, mangue Feito escorre o sangue Negro como lama Mais alguém que clama O ôco louco desse povo Sem noção do que fazer Chico, cadê você? Nem Josué veio pra ver!
As pontes, os rios e os overdrives Não esculturam mais os manguezais O mangue carente parece doente De tanta sujeira que escorre à sua frente!
Aqui não preservaram Feito loucos se atracaram Fui falar e nem deixaram Não há nada a se fazer
Pulei das pontes e nadei Nos rios quase me afoguei De tanto lixo que passou
Ser humano cada vez mais decadente Mostra a faca, esconde os dentes Nunca vi mais valentia Mata à noite, mata ao dia A mata toda já morria Quando tudo começou
As pontes, os rios e os overdrives Não esculturam mais os manguezais O mangue carente parece doente De tanta sujeira que escorre à sua frente!