[COLUNA] Comunicação e memória cultural em gourmetização - por Antônio Gabriel
- Antônio Gabriel
- 28 de jul. de 2015
- 4 min de leitura

A discussão da memória em conceito e capacidade é algo relativo e pouco explorado cotidianamente. Em todas as definições, porém, se aceita, muitas vezes sem perceber, que a memória envolve três dimensões: ao ser evocada no presente, remete ao passado, tendo em vista o futuro. O processo de construção de “cultura” individual, parte da mistura dos âmbitos da herança/memória cultural e comunicativa.
A diferença entre as duas é básica. A memória comunicativa é, por assim dizer, lembranças de acontecimentos cotidianos, e que voltam à tona pela oralidade a título, por exemplo, de um divertimento. Em contrapartida, a memória cultural é definida de forma perfeita pelo pesquisador e teórico alemão Jan Assmann, como: “faculdade que nos permite construir uma imagem narrativa do passado e, através desse processo, desenvolver uma imagem e uma identidade de nós mesmos, que podem ser armazenadas, repassadas e reincorporadas ao longo das gerações.”. Usando e abusando da abrangência da discussão, a mistura dessas duas substâncias comprovam que Goethe estava certo em afirmar que “o caráter se cria na agitação do mundo”.
Usando a mesma deixa de Goethe, o que talvez o escritor alemão não imaginasse fosse que o seu pensamento tomasse uma via contrária àquilo que ele inicialmente proposto por ele. A mesma agitação do mundo está sendo capaz de criar o que se chama de “sociedades do esquecimento”. O ser humano atual vive em contato com informações diversas e em quantidades atômicas diariamente, e ainda sendo obrigado a consumir todas elas de forma acrítica, ou seja, sem maior cuidado seletivo ou reflexão, fazendo com que a memória perca com o tempo a sua capacidade de armazenamento para tudo aquilo que é importante para o ser, como também a perda da capacidade de desprezar tudo aquilo que não é relevante.
As “sociedades do esquecimento” vão de encontro não somente ao pensamento de Goethe, mas também de Yuri Lotman, semiólogo russo que viveu muitos anos por trás da cortina de ferro. Yuri afirma que “cultura é memória, pois é a cultura de uma sociedade que fornece filtros através dos quais os indivíduos que nela vivem possam exercer o seu poder de seleção, realizando as escolhas que determinam aquilo que será descartado e aquilo que precisa ser guardado pela memória, porque, sendo operacional, poderá servir como experiência válida ou informação importante para decisões futuras”.
Se há consumo de informação sem filtro, há uma homogeneização cultural, piorando o quadro se pensarmos da maneira na qual a informação chega aos ouvidos ou aos olhos de cada um de nós. A herança cultural é de fato algo inevitável e inerente ao ser humano, mas mais importante que ela é a relação que o mesmo ser humano tem com a sua realidade, e não necessariamente essa relação terá de ser compatível com aquela bagagem que ele já carrega, proveniente, principalmente, de sua criação familiar. Dessa maneira, sem seletividade no consumo informacional, os valores predefinidos se tornam essencialmente dispensáveis.
O modismo de gourmetização não tem um conceito afixado e convencionado, porém o ser humano vivente na atual sociedade tem o conhecimento de que essa onda está atingindo todos os âmbitos possíveis. A cultura tornou-se um desses âmbitos antes mesmo da modinha dos food trucks ou das Arenas esportivas que, daqui a um pouco, não duvido se forem construídas com um ar-condicionado central.
A evolução da mídia e do mundo digital sofisticou a memória cultural e a tornou quase que um comércio. CD’s, DVD’s, fotografias e a imprensa, tornaram o papel dos mais velhos, responsáveis pela passagem da herança cultural, praticamente obsoleto. Não que o avanço do mundo digital seja algo desprezível, até pelo fato básico de que tudo hoje passa por algum processo tecnológico, mas a memória comunicativa, discutida no início deste artigo, que é de certa forma individual, foi deixada de lado, e ela sim faz parte da construção da memória/herança cultural, já que ela representa a transmissão de lembranças do seu cotidiano, que não necessariamente são historinhas engraçadas.
A tecnologia poderia sim ser chave importante no desenvolvimento da seletividade que está sendo perdida com o crescimento das “sociedades do esquecimento”, mas ela se torna uma maneira mais viável do exercício de poder, tendo em vista que institucionalização da memória (por conta do enorme fluxo de informações diárias, e criando setores responsáveis pela seleção, coleta, organização, guarda e manutenção adequada e divulgação da memória de grupos sociais ou da sociedade em geral) vem substituindo por completo o papel dos idosos na sociedade.
A professora emérita da USP, Ecléa Bosi, já afirmava que a memória compartilhada cria pontes de relacionamento e faz com que haja, de certa maneira, um domínio sobre o tempo e empuxo a ação em conjunto. Esse tipo de relação ainda não foi substituído pelo que estamos chamando de “gourmetização da memória”, até pelo fato de ser algo básico em qualquer relação pessoal, e, de certa forma, o advento da tecnologia vem facilitando a criação dessas pontes.
A memória cultural é algo diversifica de ser humano para ser humano. “Gourmetizar” é algo que, por consequência, podemos considerar extremamente desumano e desrespeitoso a condição humanística."
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